O uso do automóvel, naturalmente, demanda uma infraestrutura própria adequada para o modelo de ruas das cidades, e como tal, a máquina, movida a gasolina, interage sobre o domínio do campo público, como um todo e não perdoa ninguém, enfim, não é um artefato neutro as condições da sociedade, acaba que congrega valores, impacta e apropria todos esses elementos de um “trem” que chegou e ficou. Foi dito que, “o consumo do automóvel como mercadoria só pode ocorrer nas ruas, na esfera pública da vida e é por isto que seu uso social, como objeto técnico determinante da vida cotidiana, não é neutro, mas carrega consigo e revela muitas das contradições até então invisíveis”[1]. Essa invisibilidade da técnica penetrou a vida dos cuiabanos modificando profundamente a maneira de viver e em um determinado momento, influenciando as contradições do processo em si, por ser um passo importante para a compreensão do desgaste social que experimentamos.
O automóvel é um objeto privilegiado por ser um caminho para se entender as relações sociais na sua análise como símbolo da modernidade e progresso. Seu papel enquanto produtor de tensões, em uma sociedade estabelecida e estruturada por um conjunto de relações de consumo, o torna responsável por desgastes sociais expressos nas contradições experimentadas cotidianamente e quando introduzido ao cotidiano das cidades no início do século XX, também o torna permanente como elemento necessário para o desejo de se estabelecer uma condição de progresso e modernidade. Obviamente, Cuiabá não estaria imune a essa circunstância, mesmo tendo chegado nos anos entre 1919 e 1937, era mencionado como uma utopia, sabe-se a cidade ainda vivia um presente ainda preso ao seu modo de vida tradicional. O Mato Grosso, com um território muito grande, naquele momento almejava as estradas de ferro, lugar onde o automóvel é tido como algo muito distante e uma ilusão, e que, em meios de transporte, ainda vivenciava os carros de bois e o lombo dos cargueiros. Desta maneira os automóveis compreendidos, no ano de 1913, quando o velho caminhão “Orion”, percorreu a estrada de Várzea Grande, o primeiro representante do automóvel “moderno” a rodar por Cuiabá, tinha o objetivo apenas de propagar, intencionalmente, a possibilidade para se alcançar o tão desejado modelo de vida para o progresso da cidade. Foi a partir do caminhão “Orion”, que tantos outros chegaram e rapidamente ocuparam o cenário assumindo o papel de um construto cultural, um elemento de tensão que reconfigurou práticas antigas e indesejadas existentes no território nos primeiros 37 anos do século XX.
D. Aquino vai o apresentar oficialmente à população da cidade, mas só será a ser representado definitivamente, como o transporte moderno, apenas no fim da década de 1930, consistentemente pelos periódicos locais como símbolo de modernização na forma de se locomover. Deste modo enfim apropriado, até se consolidar, mais precisamente no ano de 1937, impulsionado também pelos discursos oficiais, se tornando um objeto que tem o poder de mobilizar imaginários. Em 20 de fevereiro de 1909, “O Manifesto Futurista”, escrito pelo poeta italiano Filippo Tommaso Marinetti, publicado no jornal francês Le Figaro, marcou a fundação do futurismo, um dos primeiros movimentos da arte moderna. Aclamava 11 exigências para uma ruptura com o passado e a identificação do homem com a máquina, a velocidade e o dinamismo do novo século. E nele não podia faltar a referência ao automóvel. “Queremos cantar o amor do perigo, o hábito à energia e à temeridade. […] Afirmamos que a magnificência do mundo se enriqueceu de uma beleza nova: a beleza da velocidade. Um carro de corrida adornado de grossos tubos semelhantes a serpentes de hálito explosivo… um automóvel rugidor, que parece correr sobre a metralha, é mais belo que a Vitória de Samotrácia”. Em 28 de maio de 1927, a Ford publicava anúncios que destacavam vantagens do carro Ford por ser seguro e cômodo em viagens longas. Estes são elementos, para a lenta apropriação do automóvel pela população cuiabana, mas definitiva, pois ela será contínua, se desenrolando até os dias atuais, recorrendo basicamente aos mesmos apelos para venda da ideia pela necessidade do automóvel.
É justo lembrar. naquele período, o poderoso avanço da economia e do capitalismo industrial monopolista realizado em escala mundial, onde o automóvel está inserido, e da ordem social que o concebe, das ideologias e crenças que o autorizavam, relacionado a ao movimento da razão, ciência, progresso e principalmente aos ideários do liberalismo. Tal concepção de progresso não é só um desejo das elites das principais capitais brasileiras e consequentemente das elites cuiabanas, desprovidas de uma causa única e significativa, são diversos os fatores que influenciam esse movimento para um futuro, que, necessariamente, deveria tomar o presente como ultrapassado, em nome da modernidade, difundido por um simbolismo extremo, a ponto de rapidamente incluir a grande maioria da população neste desejo de transformação. De tal forma, criando uma conjuntura simbólica que intervém de fato, carregada de forte ideologia positivista, estabelecida na formação dos intelectuais da época, e ainda por uma onda de mudanças tecnológicas, dentre elas, o automóvel.
Um dos momentos, entre os mais efervescentes dessas intencionalidades que foram emergidas em processo de políticas socioeconômicas e culturais, surgiram a partir da comemoração do bicentenário da fundação da cidade no ano de 1919, tendo como fim de seu desenvolvimento o ano de 1937, marcado pelo início do Estado Novo, com a presença do interventor Júlio Strübing Müller, ao estabelecer a fase de apropriação do automóvel e o início de transformação do espaço social da cidade de Cuiabá. As transformações da sociedade são inter-relacionadas com as modificações urbanas. Dentro deste universo, o automóvel também vai impor alterações na arquitetura da cidade, que se expressa pelas suas localidades, pela sua condição de poder e de riqueza. A cidade, neste momento, vive e sobrevive de seus sonhos. Lembrar dos sonhos e esperanças que o trem criou no imaginário dos cuiabanos, no início do século XX, ajuda a compreender como o automóvel veio a ser uma alternativa possível àquilo que o trem não concretizou.
Há um símbolo nisso tudo sempre, o sonho por transformações, ao mesmo tempo um medo, um tipo de anseio de perda, de uma esperança. Como bem disse o professor Fernando Tadeu de Miranda Borges, ao citar Eduardo Subirats, propondo uma perspectiva onde, a angústia por melhores dias, passou a […] ocupar, na cultura tecnocientífica, aquele mesmo lugar que a cultura ilustrada do século XVIII ou a filosofia positivista do século XIX concederam à fé no progresso, à confiança no poder da razão ou à utopia de um futuro social justo e igualitário. Para o professor, “o trem é um exemplo simbólico deste medo e desta esperança, visto que a mudança está assentada sobre uma “cultura da esperança”, a espera e a esperança no trem, há mais de cento e cinquenta anos presente no imaginário cuiabano estão entrelaçadas de forma bastante intensa com o mundo moderno, que caminha para uma estação que dizem existir em algum lugar desconhecido, nesse labirinto de inúmeras incertezas denominado individualismo, e que, no enleio do contexto, acaba por fornecer um sentido à vida e ao viver, avante em direção a um nada, que passa a ser tudo, dentro do princípio do tudo ou nada, na ilusão de não naufragar”. Cuiabá desejava mudar a concepção de uma imagem de cidade insalubre, que a colocava em uma situação secundária dentro do Estado, principalmente em relação a Campo Grande, desejosa por se tornar a sede da capital de Mato Grosso.
Apesar de sabermos que jamais ocuparia o lugar das locomotivas no conjunto de ideias de progresso e modernidade, o automóvel também não deixa de ser uma ideia e uma esperança. Modernização, progresso, liberdade, prosperidade, são desejos plantados pela mesma ordem ideológica carregada, tanto no trem como no automóvel. O segundo chega a onde o primeiro não alcançou, mas não realiza o sonho do progresso. A diferença maior é que o automóvel, distinto do trem, se materializa, se faz presente ao ser apropriado de forma específica e, consequentemente, participa da reconfiguração do espaço, como podemos ver nos discursos proferidos na sua representação cotidiana. Entretanto, a modernização e progresso não chegaram com o automóvel. Cuiabá demora ainda algumas décadas para mudar seus hábitos.
O automóvel, tornou- se um dos principais, senão o principal símbolo deste movimento de modernização, mesmo que despercebido, para a transição das práticas sociais que estavam se engendrando lentamente. Como vimos, das máquinas e das tecnologias surgidas nesse período, o automóvel é o mais impactante sobre o modo de vida da população cuiabana. Atuou, impôs e apropriou representações e práticas sociais que permanecem ainda nos dias de hoje. O automóvel chegou nas ruas de quase todas as cidades brasileiras de forma surpreendente em pouco tempo no início do século XX, no caso da cidade de Cuiabá, a chegada do carro, trouxe um início de modernização lento, mas dentro do objetivo momentâneo de definição de papel da cidade em se manter capital do Estado, houve uma grande contribuição. Foi neste período que se iniciou o processo de transformação, mesmo que a cidade não tenha vivido as transformações suficientes para que possamos considerar uma efetiva inserção de hábitos relativos ao modo de vida capitalista. O automóvel não realizou o sonho liberal de desenvolvimento de uma sociedade nem mesmo próxima “à utopia de um futuro social justo e igualitário”. Apropriou e representou algumas práticas sociais com características do modo de vida burguês, porém a cidade levaria ainda algumas décadas para representar esse modelo de vida. É verdade que sua chegada e assimilação motivou sonhos não muito diferentes dos desejos criados pela esperança da chegada do trem, que hoje são realidade.
[1]Marilda Lopes Pinheiro Queluz.
Colunista MT Econômico: Ricardo Laub Jr.
Historiador e Empreendedor graduado no Curso de Licenciatura Plena em História na UFMT- Universidade Federal de Mato Grosso e em EMPREENDEDORISMO (2005) pelas Faculdades ICE. Com Mestrado em História Contemporânea pela UFMT/PPGHIS. MBA – Master in Business Administration em Gestão de Pessoas, MBA – Master in Business Administration em Gestão Empresarial e MBA – Master in Business Administration em Gestão de Marketing e Negócios. Professor na faculdade, Estácio de Sá – MT, Invest – Instituto de educação superior. Presidente da AGENCIAUTO/MT- Associação do Revendedores de Veículos do Estado de Mato Grosso, com larga experiência profissional na elaboração de planos de negócio voltados para o ramo automobilístico, gerenciamento comercial, administrativo, controle de estoque, avaliação de veículos, processos operacionais e estratégicos para empresas do setor automotivo e gestão de pessoas no âmbito organizacional.
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